Thursday, November 10, 2005

“A porta fechou-se após a sua passagem. Ninguém a ouvia passar, nunca. Ela andava silenciosamente, calmamente, como se o tempo parasse à sua passagem, numa vénia muda e surda que ninguém alguma vez poderia ver. Mas ela sentia-os, sim eles estavam todos ali reunidos e dobravam as cabeças à sua passagem. Ela era imponente e controlava todas aquelas almas medíocres que se baixavam e lambiam o pó do chão quando ela passava.
Ninguém, jamais, parecia reparar no seu poder, era algo que passava despercebido aos meros humanos. Eles não a sentiam, não a cheiravam e, sobretudo, não a viam. Quando alguém olhava para ela via apenas uma garota baixa, de cabelos negros e olhos ainda mais escuros e penetrantes. Uma rapariga inofensiva, vestida com roupas escuras e fora de moda, uma pequena mulher tirada de um mau filme de terror dos anos 40. Era isso que a sua limitada visão lhes permitia ver. Não viam a sua imponência quando se levantava, nem as suas mutações na altura. Ela poderia ter dois metros ou cinquenta centímetros. Quando queria era invisível, até para aqueles que estavam preparados para a ver, mas outras vezes mostrava-se poderosa e conseguia o efeito que queria: um conjunto de almas medíocres ajoelhadas temendo olhar para ela.
Esta era a sua pessoa, um alguém que vagueava igualmente bem entre as almas e os humanos, um todo no meio do nada, a cereja no bolo.
À sua passagem todos tremiam e aquela fila de almas que se encontrava ali, numa vã tentativa de a acalmar, estava perto de ver a sua fúria. Ela estava zangada com a falta de sensibilidade e sentido de oportunidade dos humanos, eles pensavam que os problemas se resumiam a dinheiro, amor e traições. Eles não percebiam nada dos projectos superiores e do seu papel neles. Eles não tentavam sequer perceber porque é que tinham sido incluídos no jogo, e isso deixava-a furiosa.
Ela tinha uma função a desempenhar, mas a falta de inteligência dos comuns mortais irritava-a, e impedia-a de continuar. Por vezes só aqueles passeios entres as almas perdidas entre os dois mundos é que a acalmavam, mas não era este o caso.
Entre as almas por que passava existia uma que se mantinha em pé, encontrava-se à sua altura e o seu olhar não a largava. Aquela alma pensava ser tão superior quanto ela? Pensaria aquele ser medíocre estar à sua altura? Apressou o passo para se aproximar daquela alma que não se mexia e a olhava penetrantemente. Parou à sua frente e reparou que aquela alma era da sua altura dum prateado mais brilhante que o normal, o que significava que era nobre, mas estava manchada de negro em certos sítios o que significava a culpa. Aquela alma não era pura e por isso nem sequer merecia estar ajoelhada a seus pés, quanto mais elevada ao seu nível...
Repreendeu-a com palavras ásperas, mas não obteve resposta, elevou a mão e não viu qualquer reacção, soprou-lhe o vento frio do vazio e como resposta sentiu na cara um sopro quente como uma brisa do deserto.
Quem era aquela figura impura, aquela alma nobre e manchada que podia, e se atrevia, a responder-lhe? Retirou a sua navalha de bolso, pois por vezes era preciso mostrar-se quem mandava para se obter o respeito de todos. Empunhou a sua navalha de ouro branco, a única capaz de matar almas, a única navalha invisível aos homens, mas cujo leve toque matava. Com firmeza empunhou-a contra aquela alma que se atrevera a desobedecer-lhe. Fez um breve golpe naquela figura prateada, e sem perceber porquê sentiu um fio de prata a escorrer do seu braço. Perfurou a cara da figura, e sentiu uma dor aguda na sua própria face... não percebia, aquela alma tinha fortes poderes, mas tinha sido ensinada que alma alguma lhe poderia fazer mal desde que usasse o seu pêndulo de gelo, e ela tinha-o, mesmo ali, junto ao coração.
Perfez um último golpe firme e profundo no centro de energia da alma de modo a conseguir elimina-la. Viu a luz de prata fraquejar e a alma começar a ceder nos seus joelhos, pondo-se em posição correcta sob a sua imponente figura. Viu a alma dobrar-se de dor e bater com a cabeça no chão, sinal de humilhação.
Sentiu os seus próprios joelhos fraquejarem e começarem a ceder. Sentiu o seu sangue prateado escorrer pela cara e sentiu um fio de água gelada escorrer-lhe pela blusa.
Ela tinha atingido a sua própria alma, e a sua arrogância tinha-a cegado. O seu desejo de poder traçara a sua destruição.
Agora. Dobrada sobre si mesma ao lado da sua alma, alma essa que nunca lhe tinha pertencido, compreendia muitos dos sentimentos humanos. Sentiu-se um mero mortal num mar de almas que vagueavam entre os mundos. Sentiu-se frágil e impotente.
Olhou à sua volta e viu todas as almas que mantinha sobre o seu poder libertarem-se para uma nova vida. Viu as manchas negras da sua alma serem apagadas e entrarem para as brumas do esquecimento.
O último pensamento que teve foi que também ela seria esquecida. Fechou assim os olhos para os dois mundos: o dos mortais e o das almas, aquele mundo para onde todos vamos assim que deixamos o mundo dos mortais.
O seu último pensamento foi de facto realizado, pois o seu desaparecimento foi celebrado no mundo das almas e a sua morte física pouca diferença fez no mundo mortal...
Ela matou e fez desaparecer aquilo que tinha de mais precioso, e por isso foi esquecida, mas a sua alma relembrada para toda a eternidade, onde agora vagueia à espera do corpo que se encontra algures a apodrecer num bocado de terra.”

2 comments:

ju said...

lindo!!
lindo, lindo, lindo...

PelaMinhaParte said...

Tens espírito de escritora - um dos sintomas mais claros é a criação de mitologias próprias e as tuas referências a certos objectos e razões (o pêndulo de gelo e a navalha de ouro branco) dão a nítida sensação de motivações maiores por detrás do que escreves. É como se os teus contos fossem relances fugazes de um mundo demasiado grande para caber todo aqui.

Tens o espírito de escritora e isso satisfaz-me e deixa-me orgulhoso de ti, Mana-Mais-Nova.

NÃO pares.

(UmaDasPartes)